Em teu ventre.


Uma das memórias mais vívidas que tenho da minha avó é a da sua devoção. Não a herdei, mas reconheço na fé uma força bruta que de tudo é capaz, até da salvação - não pelo milagre, mas pela esperança. Sou uma crente do respeito e da liberdade religiosa, e interesso-me, não pela igreja nem pelos textos que, para mim, pela temporalidade, pela punição e pela imposição, pouco têm de sagrado, mas sim pelas diferentes perspectivas que um mesmo Deus é capaz de fazer nascer.

Cresci na base de um Cristianismo que não sigo mas que fortaleceu os alicerces da minha moralidade. A minha avó foi, durante anos, mais do que minha mãe. Educou-me e amou-me na mesma proporção, e transmitiu-me princípios que, na sua essência, provêm das ideias professadas por Jesus. Frequentei a catequese e fiz a Primeira Comunhão por escolha própria, e também fui eu quem decidiu afastar-se da Instituição, num momento em que as perguntas sem resposta incentivaram a uma rebeldia apropriada à idade que tinha. 

Hoje, numa efeméride quase centenária - as aparições datam de 1917 - reaproximo-me da Igreja numa profissão de interesse, mais do que de fé. Sou uma apaixonada pela História, acredito que olhar através das vivências daqueles que existiram antes de mim pode ensinar-me muito sobre o mundo. "Em teu ventre", o mais recente livro de José Luís Peixoto, aborda essa ruralidade tão portuguesa, traça o retrato rigoroso de um país antigo, dando-nos o contexto real que envolveu as aparições. Nunca as descreve, porque não é esse o interesse: a motivação do autor, sinto-o, foi mostrar reacções, explicar receios, mostrar o ambiente no qual o facto, conhecido, se desenrolou. Não é um livro sobre as aparições, mas sim um livro cuja acção decorre durante o período das aparições. Ao mesmo tempo, através do discurso de diversas mães (a de Jesus, a de Lúcia - a pastorinha -, a Natureza, e a nossa mãe interior), homenageia a força que, tal como a fé, a maternidade é capaz de despertar.

Continuo a querer ler livros sobre mulheres que, para lá de tudo, são mães. Já o disse antes: sou profunda admiradora da escrita de José Luís Peixoto e das emoções que, através de uma prosa tão poética, nos consegue transmitir. Esta obra, mais do que questionar ou confirmar a veracidade da palavra de três crianças, relembra-me que, muitas vezes, é no acreditar que está a base de todas as coisas.

"Todas as pessoas têm direito a descanso, menos as mães. Para cada tarefa, profissão ou encargo há direito a uma folga, menos para as mães. Se alguma mãe demonstrar a mínima fadiga de ser mãe, haverá logo uma besta, ignorante de limpar baba e de partir, que se oferecerá para a pôr em causa. Não é mãe, não sabe ser mãe, não foi feita para ser mãe, dirá. Mas, se todas as pessoas têm direito a descanso, será que as mães não são pessoas? A culpa é nossa. Sim, a culpa é das mães. Deixámos que fossem os filhos a definir-nos."

José Luís Peixoto.

CONVERSATION

1 comentários:

  1. Lembro-me que te disse na altura que ser mãe era para mim uma profissão de fé. E cada dia mais acho que é preciso coragem. A citação que escolheste é fantástica e tão verdadeira. Ser mãe é isso mesmo. Ser vida sempre. Ser mulher, até exemplo, ser maternidade. É mesmo para corajosas. ❤ e nunca deixes de escrever sobre livros. Na verdade, acho que te vou ter que perguntar se posso pegar nele novamente :)

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