Sobre o momento em que conheci a minha filha.


Lembro-me de ter os sentimentos congelados pelo medo. Foram apenas alguns instantes, mas aconteceram dentro de mim, aconteceram naquele corredor frio de hospital onde, sozinha, dezanove horas de trabalho de parto e uma cesariana depois, conheci a minha filha. Pensando nesses momentos, hoje, à distância de quase seis meses, sinto que foi uma crueldade apresentarem-ma assim: um monte de mantas atirado para cima da minha maca, sem qualquer palavra, sem nenhuma indicação ou ajuda. Foi aí que decidi - provavelmente atordoada, mais pelo momento que vivia do que pelas três epidurais e pela anestesia geral que levei - que nunca seria uma mãe-robot.

Não fiz aulas de preparação para o parto. Não li livros sobre maternidade. Pesquisei na internet algumas teorias em relação a temas específicos, como a amamentação e as rotinas de sono, mas cedo desisti de o fazer. Não queria perder-me em contradições, e muito menos em discussões acesas, numa fase tão fulcral e decisiva da minha vida: aquela (em) que tudo mudava. Estava já talvez preparada, de alguma forma, para essa tomada de decisão, ao acreditar que as respostas só surgiriam no momento em que as perguntas se colocassem, e não antes, na era das suposições, da imaginação e do sonho. Não me parecia lógico definir, antes ainda de efetivamente acontecer, algo tão volátil como o é a maternidade, tão dependente de tantos factores que nos são desconhecidos até ao momento do nascimento. Sempre quis amamentar, mas não me preocupei demasiado com isso. Afinal, não sabia sequer se o leite ia subir. Na verdade, não me preocupei demasiado com nada. Estava ciente da importância de nos informarmos tanto quanto estava tranquila com relação ao meu desconhecimento, por ser crente na capacidade de nos reinventarmos e de aprendermos no acto do fazer. Esperei, isso sim, receber alguma orientação no hospital, que a tive, importa dizer, mas não na altura mais importante, a do primeiro contacto com a minha bebé.

Não consegui emocionar-me, não tive tempo para olhá-la ou simplesmente senti-la, pela primeira vez do outro lado de mim. Esses segundos com ela ninguém mos devolve, e é longa a frustração de não nos terem criado condições diferentes para o nosso primeiro encontro, mas também ninguém mos tira: percebi, apesar da ausência de espaço para a emoção, que eu, como mãe, já me valia.

Encostei-a a mim, pele com pele. Falei-lhe baixinho, palavras soltas que a memória e o choque já apagaram. Sei que lhe disse o essencial. Disse: "a mamã está aqui". Quando ela procurou mamar, percebemos imediatamente as duas o que fazer, como fazê-lo, e quando parar. Não sei se foi apenas sorte. Acredito no instinto, conheci-o ao mesmo tempo que a conheci a ela. Conheci-o no momento em que me conheci como mãe. E sei que, apesar de solidão aguda e da sensação de estar perdida que, então, se apoderaram de mim, a natureza assumiu as rédeas. Decidi que queria que fosse sempre assim.

Agora, quando ela chora e o medo volta a congelar-me, sinto(-me). Sinto-a. Os livros conhecem a teoria, mas eu conheço a minha filha. Essa foi a maior aprendizagem que retirei do momento tão impessoal, depois de acordar em gritos de uma cirurgia que me foi imposta, há um dia sem comer, cheia de frio e sem saber o que fazer, em que a abracei pela primeira vez. 

CONVERSATION

1 comentários:

  1. A maternidade não é perfeita, nem um conto de fadas. É real, vem das entranhas literalmente. E é isso que este teu texto é. Um retrato da maternidade real. Daqueles primeiros momentos que devem meter tanto medo e ao mesmo tempo devem parecer tão naturais. Foste e és uma corajosa. Foste e és uma mãe guerreira. A tua filha diz-te isso sempre que sorri para ti. Ela sabe. ❤

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